Vol. 17 Núm. 2
Apresentação
A condição de imanência no tempo desafia-nos a sermos gestores de nossa existência, de nosso mundo individual e coletivo. Sabemos que a especificidade do humano só pode ser captada na apreensão das mediações nas quais nossa existência se plasma. Daí o interesse pela práxis, isto é, nosso processo de mediações com a natureza, com a sociedade e com a cultura, com as quais nos constituímos como seres humanos. Quer dizer, o interesse pela história da educação decorre da pergunta pela nossa historicidade, tentando desvendar os caminhos e processos pelos quais nos tornamos o que somos. O presente número da revista Conjetura contempla textos que enfocam aspectos da história da educação. Na organização do mesmo, não houve o objetivo de formar um número temático. E como o leitor estará observando, os textos apresentados pelos autores são relativos a diversas manifestações de práticas educacionais na história da educação. No seu conjunto, revelam facetas da multiplicidade de iniciativas e da criatividade humana no ato de pensar e praticar o processo escolar referente aos séculos XIX e XX. A ordem dos textos segue a sequência cronológica das práticas educacionais explicitadas nos mesmos. Convidamos para a leitura das narrativas apresentadas pelos diversos autores com o sentimento de que será um momento de leitura e reflexão interessante a respeito de algumas práticas educacionais em nosso processo escolar que, certamente, interferiram na constituição de nossa prática atual, entendendo-a em sua historicidade e nos motivando a repensá-la constantemente.
Em Práticas de castigos escolares: enlaces históricos entre normas e cotidiano, Milena Aragão e Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas tratam, em texto muito instigante, da questão do castigo nas escolas, nos séculos XIX e XX. Enfatizam as estratégias das instâncias de poder na ordenação dessas práticas e as táticas para lidar com as normatizações na dinâmica diária do processo escolar por parte de gestores e professores. No século XIX, os professores recorriam a férulas, chicotes e palmatórias para manter a ordem e a disciplina. Essa violência não ocorria somente nas escolas, estava presente também nas relações humanas do período, retratando uma sociedade impregnada de práticas violentas. Diversas fontes sinalizam para casos de oposição a essas práticas e também revelam casos de professores que solicitavam a autorização dos pais para o uso das mesmas. Em algumas unidades da Federação, foi possível constatar que pais retiraram seus filhos de escolas públicas, sem castigos físicos, matriculando-os em escolas particulares nas quais esse hábito ainda era admitido. As autoras ressaltam que a questão dos castigos físicos não estava restrita ao universo escolar, pois a cultura de violência permeava a sociedade como um todo. Ao longo do século XX, ocorreu um gradativo avanço das posições contra a violência escolar na formação docente e diversos órgãos de proteção da infância foram criados, como a Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância (1934), o Serviço de Assistência ao Menor (1941) e a Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor (Funabem) (1964).
Eduardo Arriada, Gabriela Medeiros Nogueira e Mônica Maciel Vahl apresentam resultados de pesquisa sobre a utilização do espaço escolar no século XIX. Enfocam principalmente a sala de aula, entendida como o lugar onde "as relações de dominação, controle e disciplina instituem um modelo de educação". A partir de fontes de pesquisa, como memórias de estudantes, ofícios de professores, programas de escolas, relatórios da instrução pública, imagens iconográficas, examinam as relações de poder engendradas no espaço da sala de aula, entendendo-as como relações permeadas de conflitos e sujeições. O espaço da sala de aula, considerado espaço por excelência de convívio escolar, retrata uma disputa de poder sob a presença constante do professor que procura impor uma relação de disciplina, regularidade de ações e comportamentos, em etapas bem-delimitadas. Os autores surpreendem o leitor com as conexões que percebem na variada materialidade escolar - como sala de aula, mobília, livros, etc. - com esse referencial de disciplinamento presente nas ações e nos simbolismos da atividade escolar.
No texto A perfeição humana na perspectiva católica de D. João Becker no período de 1912 a 1946, Cláudia Regina Costa Pacheco, Elomar Antonio Calegaro Tambara e Jorge Luiz da Cunha examinam a contribuição desse arcebispo de Porto Alegre para a constituição de um ideal humano tendo a educação como principal mecanismo para a sua efetivação. Os autores realizaram uma pesquisa bibliográfica, promovendo a análise da documentação histórica referente ao acervo da revista Unitas, fundada por esse arcebispo para ser o instrumento oficial de comunicação da arquidiocese. Concluem que a arquidiocese, sob a liderança de D. João Becker, ditava Conjectura, v. 17, n. 2, maio/ago. 2012 11 diretrizes para a educação, pois considerava sua principal função ensinar "a verdade" católica, tida como referência para redimir a humanidade doentia. Por isso, na Unitas, apresentava-se a Igreja como organizadora da sociedade humana, buscando reforçar o crucial papel da juventude, considerando a família como ambiente natural da e necessário à educação. E a escola era concebida como espaço complementar para a família e a Igreja, devendo harmonizar-se com os ensinamentos dessas duas instituições. Segundo as diretrizes de D. João Becker, a educação cristã era superior a qualquer método pedagógico moderno. Esses eram considerados imperfeitos e prejudiciais se não estivessem de acordo com a moral cristã. Por isso, a educação cristã dos jovens, iniciada ainda no seio materno, com o auxílio da Igreja, seria complementada no âmbito escolar em harmonia com os mesmos princípios. No período em questão, a normatização da Igreja Católica para a educação foi marcante para a região de abrangência da arquidiocese, considerando-se sua rede de instituições e sua influência na sociedade de então.
Álbuns confeccionados pelas professoras do primeiro ano primário do Colégio Farroupilha (Porto Alegre/RS), de 1948 a 1966, com fotografias das turmas e as cartinhas de cada aluno, acompanhadas por fotografias individuais, constituíram o objeto de estudo cujo resultado sua autora, Maria Helena Câmara Bastos, apresenta em seu texto. Ela considera que os álbuns e, especialmente, as cartinhas constituem um expressivo corpus documental do cotidiano da escola e das práticas educativas. Essa prática ocorreu ao longo do primeiro ano, quando se efetivava o processo de alfabetização, expressando toda uma rede paralela de significações. Maria Helena centrou-se no exame da materialidade desse acervo e analisou a prática de escritas escolares infantis, objetivando perceber os mecanismos de continuidade e descontinuidade presentes no trabalho pedagógico. A pesquisa detém-se no exame da materialidade do conjunto de 34 álbuns do memorial e analisa as práticas de escritas escolares infantis a partir da escrita epistolar. Examina o que os alunos escrevem, como se apresentam à diretora, pergunta-se por diferenças de gênero entre as escritas infantis e também enfoca a caligrafia e a correção da ortografia. Busca, ainda, perceber os mecanismos de continuidade e descontinuidade presentes no trabalho pedagógico de alfabetização. A autora salienta a importância da infância e da instituição escolar na construção social da memória e o interesse histórico de ver traços de tempos passados mostrando que as memórias de vida ou as escritas ordinárias são testemunhos preciosos da cultura escolar de um tempo e de um espaço significativos para a construção da história da escola e da educação.
No artigo Memórias de docentes: narrativas sobre saberes e fazeres de duas professoras rurais de Caxias do Sul/RS (1920-1950) são privilegiadas as memórias das professoras Alice Gasperin e Irides Lourdes Rech. Elas foram docentes rurais que atuaram em Caxias do Sul, no período de 1920 a 1950. Gelson Leonardo Rech, Lúcio Kreutze e Terciane Ângela Luchese, autores do texto, procuram entretecer a história da educação desse município a partir das histórias ordinárias de vida dessas professoras. Entendem que o relato da experiência delas permite compreender os cenários escolares rurais: os saberes ensinados, os fazeres cotidianos, as dificuldades para frequentar a escola, para se tornarem e, mesmo, para se manterem professoras. Os autores do texto não se preocuparam em trazer relatos de professoras que tivessem o mesmo perfil ou vivido no mesmo momento histórico, mas enfatizar diferenças, trajetórias e experiências múltiplas que, no entanto, convergem em diversos aspectos, quais sejam: ambas foram professoras rurais em Caxias do Sul, tendo iniciado a carreira como leigas. Alice permaneceu como professora por mais de quatro décadas, tendo buscado formação. Irides, tendo cursado os quatro anos do então Curso Primário, lecionou de forma voluntária aos que não se aproximavam da escola quer por a negligenciarem, quer em virtude da opção preferencial pelo trabalho, marca remanescente dos primeiros imigrantes. Após alguns anos de atuação, foi impelida pelas condições da própria família, a desistir da docência. O texto remete a essas peculiaridades. Curiosamente, a experiência de Irides ocorreu na segunda metade da década de 40 (séc. XX), quando Caxias do Sul já contava com uma centena de escolas municipais e em torno de 120 professores, sendo que, em Fazenda Souza, onde morava, havia várias escolas municipais, duas escolas particulares e uma escola estadual. No entanto, alunos ainda frequentavam aulas particulares dadas por professores de ofício ou simplesmente um pouco mais instruídos. As famílias buscavam resolver a questão da educação informalmente, a seu jeito. Entendiam a importância da alfabetização dos filhos, no entanto, em alguns casos, encaminhavamnos por meios menos ortodoxos. No texto também fica claro que a concepção de magistério dessas duas professoras retrata seu comprometimento com a comunidade, em suas múltiplas funções. De outra parte, percebe-se o reconhecimento simbólico do fazer docente nas comunidades rurais caxienses.
Doris Bittencourt Almeida investigou a revista O Clarim, produzida pelos alunos do Colégio Farroupilha, em Porto Alegre/RS, entre os anos de 1945 e 1965. No texto Um periódico juvenil: civilidades nas páginas de O Clarim percebe-se que esse periódico constitui-se em rica fonte para a história da educação por revelar representações da cultura juvenil daquele tempo. No texto de Doris, interessam os significados dos discursos difundidos pelo periódico, nos processos de subjetivação provocados pelos textos e suas possíveis influências na construção da identidade daqueles jovens. A pesquisa identifica-se com os pressupostos teóricos da história cultural e se inscreve no campo das práticas de leitura e escrita e de memórias juvenis, tendo como referenciais as concepções de cultura escrita como uma produção discursiva de um determinado tempo e lugar. Os periódicos estudantis constituem-se em um mportante veículo educativo para seus leitores e revelam um pouco da história das instituições educativas. Além disso, traduzem aspectos significativos do cotidiano escolar e mostram indícios de saberes e de práticas escolares identificadas com preceitos de civilidade. Ao longo das páginas das revistas, vai sendo explicitado um modelo de aluno que precisa desenvolver autocontrole e autorregulação, que deve acreditar em determinados conceitos, desenvolver certas atitudes e não outras, enfim, deve civilizar-se e priorizar o estudo em sua vida para alcançar um padrão de comportamento desejado pelo mundo dos adultos.
Beatriz T. Daudt Fischer e Marcos Fontana Cerutti pesquisaram a Comissão Especial de Investigação Sumária (Ceis), instalada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) logo após o golpe civil-militar/ 1964, que teve como objetivo investigar ações consideradas subversivas, envolvendo professores, funcionários e estudantes. Os autores do texto Comissão Especial de Investigação Sumária: uma estratégia política nada sutil (Brasil, golpe civil-militar/1964) buscaram saber como tal acontecimento é hoje relembrado por alguns estudantes da época, diretamente envolvidos naquele contexto. Para busca de dados, optaram pela história oral, coletando narrativas de cinco sujeitos, além de pesquisa documental: atas, fichas de informações, ofícios e matérias do jornal Correio do Povo. No texto, acerca daquele contexto, apresentam detalhes significativos sobre o funcionamento da referida comissão. O conjunto de dados coletados serve como pano de fundo para melhor compreender a época, facilitando a busca por sujeitos, então estudantes, que agora disponibilizam algumas horas de seu cotidiano para, através da memória, rememorar tal acontecimento. A análise desses documentos revela que existiu uma cooperação entre os órgãos de repressão no que se refere à troca de informações. Analisando o depoimento dos sujeitos, constata-se que o movimento estudantil não restringiu sua participação e ação às questões acadêmicas, pelo contrário, os estudantes tinham um forte vínculo com as demais questões políticas da sociedade. Outro aspecto que chamou muito a atenção nas cinco entrevistas analisadas foi o forte vínculo do movimento estudantil com os movimentos sociais. Os anos 60 do século XX marcaram a intensa atuação de diversos movimentos sociais organizados, tanto de esquerda quanto de direita, como os sindicatos, as ligas camponesas, o próprio movimento estudantil, os movimentos de alfabetização de jovens e adultos, principalmente através do método de Paulo Freire, de movimentos ligados à Igreja Católica e de partidos políticos, que foram reprimidos pela ditadura militar. Os cincos sujeitos da pesquisa tinham ligação com o movimento estudantil.
Giana Lange do Amaral e Josiane Alves da Silveira no artigo Os bastidores de uma pesquisa em história da educação: a Faculdade Católica de Filosofia de Rio Grande/RS destacam as escolhas e os caminhos da produção de uma pesquisa histórica sobre a Faculdade Católica de Filosofia de Rio Grande. O texto centra-se na fundamentação teórico-epistemológica da pesquisa. Para compreender as diferentes fases do trabalho com História Oral recorreram, principalmente, a Alberti (1989, 2005) e Ferreira e Amado (1998). Já para o embasamento da memória buscaram apoio em estudo de Bosi (1994, 2003), Catroga (2001) e Halbwachs (2004). Apostam na diversificação das fontes de esquisa, tendo como base os estudos de Pesavento (1995, 2004, 2008) e Burke (2005) sobre os caminhos abertos pela História Cultural. Já para a utilização de fontes escritas, os documentos institucionais e os jornais recorreram a Luca (2005), Ragazzini (2001) e Veyne (1987). O texto compreende uma cuidadosa tentativa de fundamentação teórico-epistemológica de pesquisa realizada na perspectiva da História Cultural. Por isso, se restringe aos bastidores da pesquisa e apresenta uma contribuição importante sob esse aspecto.
No fim são publicadas duas resenhas que privilegiam diferentes vieses. A leitura do livro Justiça: o que é fazer a coisa certa, de Michael Sandel produzida por Alessandra Bombassaro, nos apresenta uma obra de filosofia política. Resultado de aulas ministradas como professor em Harvard, ao longo dos dez capítulos, Sandel, crítico do liberalismo, trata de temas diversos e contemporâneos, tais como: a filosofia do livre mercado, o socorro financeiro aos bancos, a bioética, o suicídio assistido, o direito ao aborto, dentre outros.
A resenha de Diogo da Silva Roiz, do livro Secularização inacabada:política e direito em Carl Schmitt escrito por Pedro H. V. B. Castelo Branco, retrata como Carl Schmitt "apreendia a questão da lei e da decisão, qual a epresentatividade do Estado e qual a função da secularização nos processos de formação de suas estruturas institucionais, e em que medida a secularização do conceito de político agiria em prol desse processo".
No conjunto de textos publicados nesta edição, evidencia-se a pluralidade de perspectivas, temas, documentos e possibilidades investigativas que têm sido pesquisados pela comunidade de pesquisadores de História da Educação. Desejamos que os artigos destaedição possibilitem discussões, viabilizem novas investigações e frutifiquem em nossos espaços de estudo e trabalho.
Boa leitura!
Lúcio Kreutz
Terciane Ângela Luchese
Organizadores
A condição de imanência no tempo desafia-nos a sermos gestores de nossa existência, de nosso mundo individual e coletivo. Sabemos que a especificidade do humano só pode ser captada na apreensão das mediações nas quais nossa existência se plasma. Daí o interesse pela práxis, isto é, nosso processo de mediações com a natureza, com a sociedade e com a cultura, com as quais nos constituímos como seres humanos. Quer dizer, o interesse pela história da educação decorre da pergunta pela nossa historicidade, tentando desvendar os caminhos e processos pelos quais nos tornamos o que somos. O presente número da revista Conjetura contempla textos que enfocam aspectos da história da educação. Na organização do mesmo, não houve o objetivo de formar um número temático. E como o leitor estará observando, os textos apresentados pelos autores são relativos a diversas manifestações de práticas educacionais na história da educação. No seu conjunto, revelam facetas da multiplicidade de iniciativas e da criatividade humana no ato de pensar e praticar o processo escolar referente aos séculos XIX e XX. A ordem dos textos segue a sequência cronológica das práticas educacionais explicitadas nos mesmos. Convidamos para a leitura das narrativas apresentadas pelos diversos autores com o sentimento de que será um momento de leitura e reflexão interessante a respeito de algumas práticas educacionais em nosso processo escolar que, certamente, interferiram na constituição de nossa prática atual, entendendo-a em sua historicidade e nos motivando a repensá-la constantemente.
Em Práticas de castigos escolares: enlaces históricos entre normas e cotidiano, Milena Aragão e Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas tratam, em texto muito instigante, da questão do castigo nas escolas, nos séculos XIX e XX. Enfatizam as estratégias das instâncias de poder na ordenação dessas práticas e as táticas para lidar com as normatizações na dinâmica diária do processo escolar por parte de gestores e professores. No século XIX, os professores recorriam a férulas, chicotes e palmatórias para manter a ordem e a disciplina. Essa violência não ocorria somente nas escolas, estava presente também nas relações humanas do período, retratando uma sociedade impregnada de práticas violentas. Diversas fontes sinalizam para casos de oposição a essas práticas e também revelam casos de professores que solicitavam a autorização dos pais para o uso das mesmas. Em algumas unidades da Federação, foi possível constatar que pais retiraram seus filhos de escolas públicas, sem castigos físicos, matriculando-os em escolas particulares nas quais esse hábito ainda era admitido. As autoras ressaltam que a questão dos castigos físicos não estava restrita ao universo escolar, pois a cultura de violência permeava a sociedade como um todo. Ao longo do século XX, ocorreu um gradativo avanço das posições contra a violência escolar na formação docente e diversos órgãos de proteção da infância foram criados, como a Diretoria de Proteção à Maternidade e à Infância (1934), o Serviço de Assistência ao Menor (1941) e a Fundação Nacional para o Bem-Estar do Menor (Funabem) (1964).
Eduardo Arriada, Gabriela Medeiros Nogueira e Mônica Maciel Vahl apresentam resultados de pesquisa sobre a utilização do espaço escolar no século XIX. Enfocam principalmente a sala de aula, entendida como o lugar onde "as relações de dominação, controle e disciplina instituem um modelo de educação". A partir de fontes de pesquisa, como memórias de estudantes, ofícios de professores, programas de escolas, relatórios da instrução pública, imagens iconográficas, examinam as relações de poder engendradas no espaço da sala de aula, entendendo-as como relações permeadas de conflitos e sujeições. O espaço da sala de aula, considerado espaço por excelência de convívio escolar, retrata uma disputa de poder sob a presença constante do professor que procura impor uma relação de disciplina, regularidade de ações e comportamentos, em etapas bem-delimitadas. Os autores surpreendem o leitor com as conexões que percebem na variada materialidade escolar - como sala de aula, mobília, livros, etc. - com esse referencial de disciplinamento presente nas ações e nos simbolismos da atividade escolar.
No texto A perfeição humana na perspectiva católica de D. João Becker no período de 1912 a 1946, Cláudia Regina Costa Pacheco, Elomar Antonio Calegaro Tambara e Jorge Luiz da Cunha examinam a contribuição desse arcebispo de Porto Alegre para a constituição de um ideal humano tendo a educação como principal mecanismo para a sua efetivação. Os autores realizaram uma pesquisa bibliográfica, promovendo a análise da documentação histórica referente ao acervo da revista Unitas, fundada por esse arcebispo para ser o instrumento oficial de comunicação da arquidiocese. Concluem que a arquidiocese, sob a liderança de D. João Becker, ditava Conjectura, v. 17, n. 2, maio/ago. 2012 11 diretrizes para a educação, pois considerava sua principal função ensinar "a verdade" católica, tida como referência para redimir a humanidade doentia. Por isso, na Unitas, apresentava-se a Igreja como organizadora da sociedade humana, buscando reforçar o crucial papel da juventude, considerando a família como ambiente natural da e necessário à educação. E a escola era concebida como espaço complementar para a família e a Igreja, devendo harmonizar-se com os ensinamentos dessas duas instituições. Segundo as diretrizes de D. João Becker, a educação cristã era superior a qualquer método pedagógico moderno. Esses eram considerados imperfeitos e prejudiciais se não estivessem de acordo com a moral cristã. Por isso, a educação cristã dos jovens, iniciada ainda no seio materno, com o auxílio da Igreja, seria complementada no âmbito escolar em harmonia com os mesmos princípios. No período em questão, a normatização da Igreja Católica para a educação foi marcante para a região de abrangência da arquidiocese, considerando-se sua rede de instituições e sua influência na sociedade de então.
Álbuns confeccionados pelas professoras do primeiro ano primário do Colégio Farroupilha (Porto Alegre/RS), de 1948 a 1966, com fotografias das turmas e as cartinhas de cada aluno, acompanhadas por fotografias individuais, constituíram o objeto de estudo cujo resultado sua autora, Maria Helena Câmara Bastos, apresenta em seu texto. Ela considera que os álbuns e, especialmente, as cartinhas constituem um expressivo corpus documental do cotidiano da escola e das práticas educativas. Essa prática ocorreu ao longo do primeiro ano, quando se efetivava o processo de alfabetização, expressando toda uma rede paralela de significações. Maria Helena centrou-se no exame da materialidade desse acervo e analisou a prática de escritas escolares infantis, objetivando perceber os mecanismos de continuidade e descontinuidade presentes no trabalho pedagógico. A pesquisa detém-se no exame da materialidade do conjunto de 34 álbuns do memorial e analisa as práticas de escritas escolares infantis a partir da escrita epistolar. Examina o que os alunos escrevem, como se apresentam à diretora, pergunta-se por diferenças de gênero entre as escritas infantis e também enfoca a caligrafia e a correção da ortografia. Busca, ainda, perceber os mecanismos de continuidade e descontinuidade presentes no trabalho pedagógico de alfabetização. A autora salienta a importância da infância e da instituição escolar na construção social da memória e o interesse histórico de ver traços de tempos passados mostrando que as memórias de vida ou as escritas ordinárias são testemunhos preciosos da cultura escolar de um tempo e de um espaço significativos para a construção da história da escola e da educação.
No artigo Memórias de docentes: narrativas sobre saberes e fazeres de duas professoras rurais de Caxias do Sul/RS (1920-1950) são privilegiadas as memórias das professoras Alice Gasperin e Irides Lourdes Rech. Elas foram docentes rurais que atuaram em Caxias do Sul, no período de 1920 a 1950. Gelson Leonardo Rech, Lúcio Kreutze e Terciane Ângela Luchese, autores do texto, procuram entretecer a história da educação desse município a partir das histórias ordinárias de vida dessas professoras. Entendem que o relato da experiência delas permite compreender os cenários escolares rurais: os saberes ensinados, os fazeres cotidianos, as dificuldades para frequentar a escola, para se tornarem e, mesmo, para se manterem professoras. Os autores do texto não se preocuparam em trazer relatos de professoras que tivessem o mesmo perfil ou vivido no mesmo momento histórico, mas enfatizar diferenças, trajetórias e experiências múltiplas que, no entanto, convergem em diversos aspectos, quais sejam: ambas foram professoras rurais em Caxias do Sul, tendo iniciado a carreira como leigas. Alice permaneceu como professora por mais de quatro décadas, tendo buscado formação. Irides, tendo cursado os quatro anos do então Curso Primário, lecionou de forma voluntária aos que não se aproximavam da escola quer por a negligenciarem, quer em virtude da opção preferencial pelo trabalho, marca remanescente dos primeiros imigrantes. Após alguns anos de atuação, foi impelida pelas condições da própria família, a desistir da docência. O texto remete a essas peculiaridades. Curiosamente, a experiência de Irides ocorreu na segunda metade da década de 40 (séc. XX), quando Caxias do Sul já contava com uma centena de escolas municipais e em torno de 120 professores, sendo que, em Fazenda Souza, onde morava, havia várias escolas municipais, duas escolas particulares e uma escola estadual. No entanto, alunos ainda frequentavam aulas particulares dadas por professores de ofício ou simplesmente um pouco mais instruídos. As famílias buscavam resolver a questão da educação informalmente, a seu jeito. Entendiam a importância da alfabetização dos filhos, no entanto, em alguns casos, encaminhavamnos por meios menos ortodoxos. No texto também fica claro que a concepção de magistério dessas duas professoras retrata seu comprometimento com a comunidade, em suas múltiplas funções. De outra parte, percebe-se o reconhecimento simbólico do fazer docente nas comunidades rurais caxienses.
Doris Bittencourt Almeida investigou a revista O Clarim, produzida pelos alunos do Colégio Farroupilha, em Porto Alegre/RS, entre os anos de 1945 e 1965. No texto Um periódico juvenil: civilidades nas páginas de O Clarim percebe-se que esse periódico constitui-se em rica fonte para a história da educação por revelar representações da cultura juvenil daquele tempo. No texto de Doris, interessam os significados dos discursos difundidos pelo periódico, nos processos de subjetivação provocados pelos textos e suas possíveis influências na construção da identidade daqueles jovens. A pesquisa identifica-se com os pressupostos teóricos da história cultural e se inscreve no campo das práticas de leitura e escrita e de memórias juvenis, tendo como referenciais as concepções de cultura escrita como uma produção discursiva de um determinado tempo e lugar. Os periódicos estudantis constituem-se em um mportante veículo educativo para seus leitores e revelam um pouco da história das instituições educativas. Além disso, traduzem aspectos significativos do cotidiano escolar e mostram indícios de saberes e de práticas escolares identificadas com preceitos de civilidade. Ao longo das páginas das revistas, vai sendo explicitado um modelo de aluno que precisa desenvolver autocontrole e autorregulação, que deve acreditar em determinados conceitos, desenvolver certas atitudes e não outras, enfim, deve civilizar-se e priorizar o estudo em sua vida para alcançar um padrão de comportamento desejado pelo mundo dos adultos.
Beatriz T. Daudt Fischer e Marcos Fontana Cerutti pesquisaram a Comissão Especial de Investigação Sumária (Ceis), instalada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) logo após o golpe civil-militar/ 1964, que teve como objetivo investigar ações consideradas subversivas, envolvendo professores, funcionários e estudantes. Os autores do texto Comissão Especial de Investigação Sumária: uma estratégia política nada sutil (Brasil, golpe civil-militar/1964) buscaram saber como tal acontecimento é hoje relembrado por alguns estudantes da época, diretamente envolvidos naquele contexto. Para busca de dados, optaram pela história oral, coletando narrativas de cinco sujeitos, além de pesquisa documental: atas, fichas de informações, ofícios e matérias do jornal Correio do Povo. No texto, acerca daquele contexto, apresentam detalhes significativos sobre o funcionamento da referida comissão. O conjunto de dados coletados serve como pano de fundo para melhor compreender a época, facilitando a busca por sujeitos, então estudantes, que agora disponibilizam algumas horas de seu cotidiano para, através da memória, rememorar tal acontecimento. A análise desses documentos revela que existiu uma cooperação entre os órgãos de repressão no que se refere à troca de informações. Analisando o depoimento dos sujeitos, constata-se que o movimento estudantil não restringiu sua participação e ação às questões acadêmicas, pelo contrário, os estudantes tinham um forte vínculo com as demais questões políticas da sociedade. Outro aspecto que chamou muito a atenção nas cinco entrevistas analisadas foi o forte vínculo do movimento estudantil com os movimentos sociais. Os anos 60 do século XX marcaram a intensa atuação de diversos movimentos sociais organizados, tanto de esquerda quanto de direita, como os sindicatos, as ligas camponesas, o próprio movimento estudantil, os movimentos de alfabetização de jovens e adultos, principalmente através do método de Paulo Freire, de movimentos ligados à Igreja Católica e de partidos políticos, que foram reprimidos pela ditadura militar. Os cincos sujeitos da pesquisa tinham ligação com o movimento estudantil.
Giana Lange do Amaral e Josiane Alves da Silveira no artigo Os bastidores de uma pesquisa em história da educação: a Faculdade Católica de Filosofia de Rio Grande/RS destacam as escolhas e os caminhos da produção de uma pesquisa histórica sobre a Faculdade Católica de Filosofia de Rio Grande. O texto centra-se na fundamentação teórico-epistemológica da pesquisa. Para compreender as diferentes fases do trabalho com História Oral recorreram, principalmente, a Alberti (1989, 2005) e Ferreira e Amado (1998). Já para o embasamento da memória buscaram apoio em estudo de Bosi (1994, 2003), Catroga (2001) e Halbwachs (2004). Apostam na diversificação das fontes de esquisa, tendo como base os estudos de Pesavento (1995, 2004, 2008) e Burke (2005) sobre os caminhos abertos pela História Cultural. Já para a utilização de fontes escritas, os documentos institucionais e os jornais recorreram a Luca (2005), Ragazzini (2001) e Veyne (1987). O texto compreende uma cuidadosa tentativa de fundamentação teórico-epistemológica de pesquisa realizada na perspectiva da História Cultural. Por isso, se restringe aos bastidores da pesquisa e apresenta uma contribuição importante sob esse aspecto.
No fim são publicadas duas resenhas que privilegiam diferentes vieses. A leitura do livro Justiça: o que é fazer a coisa certa, de Michael Sandel produzida por Alessandra Bombassaro, nos apresenta uma obra de filosofia política. Resultado de aulas ministradas como professor em Harvard, ao longo dos dez capítulos, Sandel, crítico do liberalismo, trata de temas diversos e contemporâneos, tais como: a filosofia do livre mercado, o socorro financeiro aos bancos, a bioética, o suicídio assistido, o direito ao aborto, dentre outros.
A resenha de Diogo da Silva Roiz, do livro Secularização inacabada:política e direito em Carl Schmitt escrito por Pedro H. V. B. Castelo Branco, retrata como Carl Schmitt "apreendia a questão da lei e da decisão, qual a epresentatividade do Estado e qual a função da secularização nos processos de formação de suas estruturas institucionais, e em que medida a secularização do conceito de político agiria em prol desse processo".
No conjunto de textos publicados nesta edição, evidencia-se a pluralidade de perspectivas, temas, documentos e possibilidades investigativas que têm sido pesquisados pela comunidade de pesquisadores de História da Educação. Desejamos que os artigos destaedição possibilitem discussões, viabilizem novas investigações e frutifiquem em nossos espaços de estudo e trabalho.
Boa leitura!
Lúcio Kreutz
Terciane Ângela Luchese
Organizadores
Publicado:
2012-09-13