v. 7 n. 14 (2008): Crítica da Mídia
APRESENTAÇÃO
Em Curso geral de midiologia, Debray (1993, p. 349) nos lembra que Napoleão fechou 97 de 157 impressoras francesas e que as gazetas parisienses foram reduzidas a quatro: cada departamento ficou apenas com um jornal.
Assim “estaremos em paz”, conta o autor, lembrando ainda que, segundo Napoleão, deve-se imprimir pouco e quanto menos melhor. É Debray ainda quem frisa, em Manifesto midiológico (1994, p. 64), categoricamente, que “não há médium inocente, também não há transmissão indolor”. Assim, a mídia figura não apenas como registro, mas também como script da história, o que não pode passar despercebido, sob pena de perdermos nosso lugar na construção dessa história.
E Foucault, em Arqueologia do saber (1986, p. 114), já afirmara que não há enunciado, em geral, livre, neutro e independente, mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo; ele se integra sempre em um jogo enunciativo.
A partir daí, podemos perceber um vínculo estreito entre cultura e ideologia. E, ao falarmos em ideologia, é impossível não tocar na questão da disputa de poder, o que exige um olhar também na direção de algumas outras noções fundantes, como controle, dominação e disciplina. Morin, em O método 1, fala de um caráter multidimensional e complexo nos componentes do conhecimento e de problemas, o que demanda diálogo entre reflexão subjetiva e conhecimento objetivo.
Se pensarmos em Brasil especificamente, teremos, segundo Barbosa Filho e Castro, em Comunicação digital: educação, tecnologia e novos comportamentos (2008, p. 118), que, na Região Nordeste, “há 68 políticos locais que sãoproprietários de veículos de rádio e TV e que os casos mais gritantes são do senador Garibaldi Alves Filho (DEM /RN ), com dez concessões distribuídas entre rádios AM, FM e TV, seguido do senador José Sarney (PMDB/MA), com nove concessões de rádio AM, FM e TV. E Nelso Traquina, em O estudo do jornalismo no século XXI (2001), acentua, pautado em Herman e Chomsky, que os mídia norte-americanos estão altamente concentrados, com cerca de uma dúzia de entidades dominando o fluxo das notícias para o público e capazes de estabelecer o valor dessas por decisão própria. No Brasil, talvez seja importante lembrar que um pequeno grupo de famílias domina amplamente o setor da comunicação.
Paradoxalmente, fala-se, cada vez mais, em administração participativa e divisão de poder. Naturalmente, significativo número de organizações depara-se com a resistência a essa distribuição do poder e mesmo com o boicote às ações de desmanche do antigo cenário interno. Pode-se pensar, portanto, que ao aumento da autonomia dos sujeitos/equipes, corresponde o aumento do controle sobre informações/dados/conhecimento/sujeitos. Nesse sentido, na imprensa, vale lembrar o papel dos gate keepers. Parece interessante, também, trazer a teoria organizacional de que fala Traquina (2001, p. 71-72), que dá ênfase ao “processo de socialização organizacional em que é sublinhada a importância duma cultura organizacional, e não uma cultura profissional”. O jornalista acaba absorvendo a política editorial por osmose: ela não lhe é passada explicitamente, enfatiza Traquina (2001), com apoio em Breed.
Organizações são, não apenas, mas também, um meio de manter fluxos de ordem e estrutura social. O crescimento exponencial das populações, a sofisticação das “relações de negócios”, o aumento do volume de dados/informações alteram e complexificam seu papel nas sociedades. Cremos importante evidenciar que esse cenário oportuniza, mesmo, uma “brecha” para a transformação desse papel. De coadjuvante, a organização passa a atriz principal, com competência, inclusive, para modificar o cenário, contando, nesse sentido, com seus pares da imprensa.
Talvez seja interessante sublinhar a teoria de ação política do jornalismo, de que fala Traquina (2001), destacando sua versão de esquerda, segundo a qual “existe um diretório dirigente da classe capitalista que dita aos diretores e jornalistas o que sai nos jornais.” (p. 82). Ainda em Traquina (2001, p. 82), Herman e Chomsky frisam: “1. O papel determinante dos proprietários dos mídia e a ligação estreita entre a classe capitalista, as elites dirigentes e os produtores midiáticos; 2. A existência de um acordo entre personalidades da classe dominante e produtores midiáticos; 3. A total concordância entre o produto jornalístico e os interesses dos proprietários e dos élites [sic]”.
Barbosa e Castro (2008, p. 96) lembram que é importante conhecer a quem pertence cada veículo de comunicação e quais as relações entre uma empresa de TV aberta analógica ou digital, rádio AM ou FM, provedor de internet, agência de notícias e as informações que disponibilizam. Esses dados ajudam a compreender por que determinado veículo escolheu uma ou outra fonte para entrevistar, ou por que adota determinada arquitetura no desenho de um fato ou de uma notícia.
Como separar linguagem e comunicação? E como desarticular discurso e prática de poder? A articulação da linguagem leva à criação de sentido e, nas cadeias significantes, estará a possibilidade de geração de múltiplos desses sentidos.
Em A verdade e as formas (1974, p. 6), Foucault mostra o discurso como “um jogo estratégico e polêmico, de ação e reação, pergunta e resposta, dominação e esquiva, luta [...]. Espaço em que saber e poder se articulam”. Diz ainda que quem fala o faz de um lugar reconhecido institucionalmente (autoridade do discurso); portanto, faz circular o saber (institucional) e, com isso, gera poder (da Igreja, por exemplo, ou da ciência). A produção desse discurso gerador de poder é organizada e distribuída por procedimentos cuja função é eliminar todo tipo de ameaça a sua permanência. No caso da imprensa, Traquina (2001, p. 77) lembra que “o jornalista sabe que o seu trabalho vai passar por uma cadeia organizacional em que os seus superiores hierárquicos e os seus assistentes têm certos poderes e meios de controle”.
Quanto ao público leitor, não podemos negar: existe uma tendência à idealização.
À massa de leitores repassa-se a ideia de neutralidade/objetividade, como se organizações jornalísticas estivessem “acima do bem e do mal”, livres de qualquer tipo de influência/interesse/julgamento.
A “ordem discursiva” própria a um período particular possui uma função normativa e reguladora e coloca em funcionamento mecanismos de organização do real por meio da produção de saberes, de estratégias e de práticas. (REVEL, Foucault, conceitos essenciais. 2002, p. 37). Uma mesma palavra assume sentidos opostos, dependendo do discurso onde esteja inserida. Podemos dizer que os diversos discursos materializam-se em formas de ver o mundo das diversas classes sociais com seus interesses, muitas vezes antagônicos: as formações ideológicas encontram as discursivas. Sabemos que palavras e expressões assumem sentido em sintonia com a posição de quem as emprega, ou seja, adquirem sentido em referência a essas posições, ou formações ideológicas, nas quais essas posições estejam inscritas. Parece-nos importante destacar que a linguagem pode funcionar como centro de poder.
Nesta edição da revista Conexão reunimos artigos que, sob vieses diversos, buscam refletir criticamente sobre a mídia e o papel que ela exerce na cristalização de relações de poder, por meio de subterfúgios diversos como, por exemplo, a calcificação de estereótipos. Precisamos destacar o duplo papel da mídia: como observadora e também como protagonista da história.
Marlene Branca Sólio
Editora