v. 8 n. 15 (2009): Cinema
APRESENTAÇÃO
Praticamente um século separa nossos dias daqueles que testemunharam o surgimento do cinema. Desde “O cantor de jazz”, exibido em 6 de outubro de 1927, oficialmente primeiro filme falado, uma larga e sinuosa trajetória marca a relação da cultura com a imagem.
De tradutora oficial da verdade, documental, ela migra, com a evolução tecnológica, na direção de locutora do imaginário. (Re)cria “formas visuais de percepção e expressão da realidade”, como diz Alice D. Trusz, no artigo que abre esta edição de Conexão.
A fotografia nasce liberando a imagem de seu compromisso com o retrato clássico, trabalho de pintores pacientemente debruçados sobre tintas e pincéis. Ela cava
seu nicho, mas não sem desalojar modos de ver, de fazer e de sentir. Ela muda o status da imagem alterando não somente o modo como o homem vê, mas o modo como ele olha para as coisas. A reprodutibilidade, a mimese, play back, o clone, os múltiplos outros que o uno escondia se escancaram a partir dela.
No momento em que a imagem adquire vida, movimenta-se, dá ao homem uma nova perspectiva. Altera, mais uma vez, sua relação com a cultura. Ao movimentarse, ao abandonar a passividade, ela faz inverter o jogo. Agora é ele quem senta, passivo, em uma sala escura, aguardando o inusitado, algo que o surpreenda, mas que também o arranca da zona de conforto em que se encontrava ao manusear seus álbuns de fotografias.
E a nova descoberta, o despertar, a nova arte, seja lá como chamemos, ganha voz e ganha cores; em um jogo de ambivalência, se aproxima, cada vez mais, da realidade, aguçando mais e mais o imaginário. Novos suportes, como a televisão, implicam novos movimentos, assim como novos processos, como a digitalização da imagem, a evolução tecnológica, marcam “soluços” que acabam por redirecionar o olhar mais uma vez.
A partir do cinema, a relação do homem consigo não será a mesma. Em um jogo de sedução, ele (o cinema) revela, como bem mostra Nestor Garcia Canclini em Consumidores e cidadãos, a sua (do homem) cara, ajuda-o a construir uma identidade.
Ao mesmo tempo, é estandarte da dominação, da imposição de valores, da exploração, como bem demonstraram o cinema representativo do new deal e a estética do cinema alemão de Hitler.
E, como a arte imita a vida, o cinema ganha fôlego ainda maior a partir da informatização da sociedade, que vai, rápida, informatizando a cultura. Efeitos especiais arrancam do espectador a ilusão de que pode alcançar a verdade do fato documentado em película. Lança-o de volta ao lugar da incerteza.
Ele é arrancado da poltrona e convidado a voltar ao seu tempo eterno, ao seu inconsciente, em que a borda entre o real e o imaginário é tênue, movediça. O real, o imaginário, a fantasia, o delírio, a alucinação – inquilinos do inconsciente – passam a habitar a “sala escura”.
Realista, ou cruel? O cinema do século XXI, fruto da arte digital, mostra ao homem que ele está, desde os primórdios, andando em círculo, atado ao inconsciente que, Freud mostra bem, é eterno e que nós traduzimos como sempre já presente.
O cinema do século retrasado abriu uma janela para o mundo interior, iniciou uma longa viagem. Assustada com o trem que avançava sobre ela, a plateia trataria logo de embarcar naquela viagem que mudaria a “cara” do mundo; que teria o poder de criar um universo paralelo; que seria capaz de transformar o olhar do homem sobre si e sobre o outro.
É desse tema tão interessante quanto importante que a Conexão se ocupa nesta edição, reunindo um leque de reflexões sobre o que chamamos de 7ª arte, amarradas, no entanto, à Sociologia, à História, à Psicanálise, à Antropologia, à Semiótica, enfim, dando conta de trazer ao leitor uma manifestação cultural tecida e retecida com os fios do olhar, do ouvir, do sentir do homem nas três dimensões nas quais, graças a ela, ele pode habitar simultaneamente.
Marlene Branca Sólio
Editora